ão recebe muita
divulgação em sua biografia, mas Fernando Pessoa, além de ser considerado um dos maiores poetas da Língua
Portuguesa, e da Literatura Universal era um homem profundamente ligado às
esferas do esoterismo e do misticismo. Está escrito na sua página da Wikipédia:
- Fernando Pessoa interessava-se pelo ocultismo e pelo misticismo, com destaque para a Maçonaria e a Rosa-Cruz (embora não se lhe conheça qualquer filiação concreta em Loja ou Fraternidade dessas escolas de pensamento), havendo inclusive defendido publicamente as organizações iniciáticas no Diário de Lisboa (4 de Fevereiro de 1935), contra ataques por parte da ditadura do Estado Novo. [...] Tinha o hábito de fazer consultas astrológicas para si mesmo (de acordo com a sua certidão de nascimento, nasceu às 15h20, tinha ascendente Escorpião e o Sol em Gémeos). Realizou mais de mil horóscopos.
Pessoa e Crowley jogam xadrez em Li |
- Apreciava também o trabalho do famoso ocultista Aleister Crowley, tendo inclusive traduzido o poema Hino a Pã. Certa vez, lendo uma publicação inglesa de Crowley, encontrou erros no horóscopo e escreveu-lhe para o corrigir. Os seus conhecimentos de astrologia impressionaram Crowley e, como este gostava de viagens, foi a Portugal conhecer o poeta. Acompanhou-o a maga alemã Miss Hanni Larissa Jaeger,. O encontro entre Pessoa e Crowley ocorreu com algum sensacionalismo, dado o poeta inglês ter simulado o seu suicídio na Boca do Inferno, o que atraiu várias polícias européias e a atenção das mídias da época. Pessoa estaria dentro da encenação, tendo combinado com Crowley a notificação dos jornais e a redação de um "romance policial" cujos direitos reverteriam a favor dos dois poetas. Apesar de ter escrito várias dezenas de páginas, essa obra de ficção nunca foi concretizada.
- O artigo “Associações Secretas”, publicado por Fernando Pessoa no «Diário de Lisboa» de 4 de Fevereiro de 1935 e que aqui se reproduz em edição anotada (capítulo I), foi, sem dúvida, o mais importante texto político que o escritor deu à estampa, tanto pelo seu conteúdo e oportunidade como pelo vasto público que alcançou. A importância do artigo advém, por outro lado, do significado e das consequências dessa rara intervenção política a céu aberto de Pessoa, que marca o início da sua ruptura definitiva com o regime de Salazar. A publicação de “Associações Secretas” desencadeou medidas retaliatórias contra o seu autor, que até aí não tivera grandes razões de queixa da censura. No debate jornalístico que se seguiu à publicação do artigo, Pessoa não pôde retorquir aos seus críticos.
Abaixo está o artigo completo que Fernando
Pessoa publicou no Diário de Lisboa, nº 4.388 de quatro de fevereiro de 1935 (ele
morreria em 30 de novembro desse mesmo ano com apenas 47 anos), contra o projeto de lei, do deputado José
Cabral, proibindo o funcionamento de todas as associações secretas (incluindo
a Maçonaria),
"sejam quais forem os seus fins e organização".
A escrita do poeta está no mesmo formato da ortografia
portuguesa à época, pois preferi não fazer nenhuma edição o que de resto seria
no mínimo uma afronta inominável a sua memória.
Apesar de fascinante é um longo texto e
recomendo àqueles interessados no tema e que não gostam de ler na tela do
computador que imprimam o artigo para degustá-lo com a devida atenção que
merece.
Fernando Pessoa mostra no seu artigo ser
profundo conhecedor da maçonaria e dos seus princípios e não era maçom (Pelo menos não há registro de sua iniciação). Ele defende com a fúria
dos justos e o brilho da sua pena a liberdade de existência principalmente da maçonaria embora o "projeto de lei" (que afinal foi aprovado pela ditadura salazarista fosse
para todas as associações secretas. Era, entretanto a maçonaria que o governo tirânico de Oliveira Salazar queria atingir; e continuou perseguindo-a por muitos anos mais.
O trecho mais famoso do artigo está
destacado por mim no corpo do post. Ele é fartamente disseminado na internet,
mas fica meio capenga ao ser lido fora do contexto expressado pelo artigo completo. Vira meramente um
fragmento da brilhante e histórica escrita de Fernando Pessoa. Afinal de contas
foi a primeira vez que Pessoa se insurgiu contra o governo e passou a ser
perseguido a partir dai. É de se notar a importância que ele dava para a maçonaria e para o seu lado esotérico e místico. O final do artigo é um primor da arte de escrever de Fernando Pessoa quando ele se dirige diretamente ao deputado autr do projeto e escreve:
- "Deixe o sr. José Cabral a Maçonaria aos maçons e aos que, embora o não sejam, viram, ainda que noutro Templo, a mesma Luz*. Deixe a antimaçonaria àqueles antimaçons que são os legítimos descendentes intelectuais do célebre pregador que descobriu que Herodes e Pilatos eram Vigilantes de uma Loja de Jerusalém." (*Certamente referia-se a ele mesmo)
Abaixo de tudo estão quatro banners. O primeiro
redirecionará o leitor ao site original de onde transcrevi o artigo; o segundo
e o terceiro levarão o leitor a dois outros outros trabalhos magníficos sobre o mesmo tema, mas com enfoques diferentes e
o quarto conduzirá o internauta à página do Google com todos os links sobre
Fernando Pessoa.
Esse é um post que me deu muito prazer (e muito trabalho também)
de produzir. Os temas da Maçonaria são sempre muito acessados aqui na Oficina
de Gerência e sei que não apenas pelos meus irmãos da Ordem. Em respeito a esse interesse dos frequentadores do blog é que resolvi postá-lo.
Texto de Fernando Pessoa
Associações Secretas
Fernando Pessoa
Fernando Pessoa
Estreou-se a Assembleia Nacional, do ponto de vista legislativo, com a
apresentação, por um deputado, do projecto de lei sobre
"associações secretas". De tal ordem é o projecto, tanto em sua natureza
como em seu conteúdo, que não há que felicitar o actual Parlamento por
lhe ter sido dada essa estreia. Antes há que dizer-lhe Absit omen!, ou seja, em português, Longe vá o agoiro!
Apresentou o projecto o sr. José Cabral, que, se não é dominicano,
deveria sê-lo, de tal modo o seu trabalho se integra, em natureza, como
em conteúdo, nas melhores tradições dos Inquisidores. O Projecto, que
todos terão lido nos jornais, estabelece várias e fortes sanções (com
excepção da pena de morte) para todos quantos pertençam ao que o seu
autor chama "associações secretas, sejam quais forem os seus fins e
organização".
Dada a latitude desta definição, e considerando que por "associação" se
entende um agrupamento mais ou menos permanente de homens, ligados por
um fim comum, e que por "secreto" se entende o que, pelo menos
parcialmente, se não faz à vista do público, ou, feito, se não torna
inteiramente público, posso, desde já, denunciar ao sr. José Cabral uma
associação secreta - O Conselho de Ministros. De resto, tudo quanto de
sério ou de importante se faz em reunião neste mundo, faz-se
secretamente. Se não reúnem em público os conselhos de ministros, também
não o fazem as direcções dos partidos políticos, as tenebrosas figuras
que orientam os clubes desportivos, ou os sinistros comunistas que
formam os conselhos de administração das comanhias comerciais e
industriais.
Embora uma interpretação desta ordem legitimamente se extraia do frasear
pouco nacionalista do sr. José Cabral, creio, tanto porque assim deve
ser, como pelos encómios com que o projecto foi afagado pela imprensa
pseudocristã, que as "associações secretas", que ele verdadeiramente
visa, são aquelas que envolvem o que se chama "iniciação", e portanto o
segredo especial a esta inerente.
Ora no nosso país, caída há muito em dormência a Ordem Templária de
Portugal, desaparecida a Carbonária - formada para funs transitórios,
que se realizaram -, não existem, suponho, à parte uma ou outra possível
Loja martinista ou semelhante, mais do que duas "associações secretas"
dessa espécie. Uma é a Maçonaria, a outra essa curiosa organização que,
em um dos seus ramos, usa o nome profano de Companhia de Jesus,
exactamente como, na Maçonaria, a Ordem de Heredom e Kilwinning usa o
nome profano de Real Ordem da Escócia.
Dos chamados jesuítas não tratarei, e por três motivos, dos quais
calarei o primeiro. Os outros dois são: que não creio, por mais razões
do que uma, que eles corram risco de, aprovado que fosse o projecto,
lhes serem aplicadas as suas sanções; e que não creio, por uma razão só,
que o sr. José Cabral tenha pretendido que tal aplicação se fizesse.
Presumo pois que o projecto de lei do urgente deputado se dirija, total
ou principalmente, contra a Ordem Maçónica. Como tal o examinarei.
Não faço, creio, ofensa ao sr. José Cabral em supor que, como a maioria
dos antimaçons, o autor deste projecto é totalmente desconhecedor do
assunto Maçonaria. O que sabe dele é até, porventura, pior que nada,
pois, naturalmente, terá nutrido o seu antimaçonismo da leitura da
imprensa chamada católica, onde, até nas coisas mais elementares da
matéria, erros se acumulam sobre erros, e aos erros se junta, com a má
vontade, a mentira e a calúnia, senhoras suas filhas. Não creio, que o
sr. José Cabral conviva habitualmente com os livros de Findel (1), Kloss (2) ou Gould (3), ou que passe as suas horas de ócio na leitura atenta da Ars Quatuor Coronatorum (4)
ou das publicações da Grande Loja de Iowa. Duvido, até, que o sr. José
Cabral tenha conhecimento da literatura antimaçónica - Barruel (5) ou Robinson (6) ou Eckert (7)
-, tão admirável, aliás, do ponto de vista humorístico. Nem terá tido
porventura noção, sequer de ouvido, do artigo célebre do Padre Hermann
Grüber na Catholic Encyclopaedia, artigo citado com elogio em livros maçónicos, e em que o doutor jesuíta por pouco não defende a maçonaria.
Ora se o sr. José Cabral está nesse estado de trevas com respeito à
natureza, fins e organização da Ordem Maçónica, suponho que em igual
condição estejam muitos dos outros membros da Assembleia Nacional, com a
diferença de que se não propuseram legislar sobre matéria que ignoram.
Sendo assim, nem o deputado apresentante, nem os seus colegas de
assembleia, estarão talvez em estado de medir claramente as
consequências nacionais, internas e sobretudo externas, que
adviriam da aprovação do projecto. Como conheço o assunto
suficientemente para saber de antemão, e com certeza, quais seriam essas
consequências, vou fazer patrioticamente presente da minha ciência ao
sr. José Cabral e à Assembleia Legislativa de que é ornamento.
Começo por uma referência pessoal, que cuido, por necessária, não dever
evitar. Não sou maçon, nem pertenço a qualquer outra Ordem semelhante ou
diferente. Não sou, porém, antimaçon, pois o que sei do assunto me leva
a ter uma ideia absolutamente favorável da Ordem Maçónica. A estas duas
circunstâncias, que em certo modo me habilitam a poder ser imparcial na
matéria, acresce a de que, por virtude de certos estudos meus, cuja
natureza confina com a parte oculta da Maçonaria - parte que nada tem de
político ou social -, fui necessariamente levado a estudar também esse
assunto - assunto muito belo, mas muito difícil, sobretudo para quem o
estuda de fora. Tendo eu, porém, certa preparação, cuja natureza me não
proponho indicar, pude ir, embora lentamente, compreendendo o que lia e
sabendo meditar o que compreendia. Posso hoje dizer, sem que use de
excesso de vaidade, que pouca gente haverá, fora da Maçonaria, aqui ou
em qualquer outra parte, que tanto tenha conseguido entranhar-se na alma
daquela vida, e portanto, e derivadamente, nos seus aspectos por assim
dizer externos.
Se falo de mim, e deste modo, é para que o sr. José Cabral e os colegas
legisladores saibam perfeitamente quem lhes está falando, e o que vão
ler, se quiserem, é escrito por quem sabe o que está escrevendo. Não que
o que vou dizer exija profundos conhecimentos maçónicos: é matéria
puramente de superfície, da vida externa da Ordem. Exije, porém,
conhecimentos, e não ignorâncias, fantasias ou mentiras.
Começo a valer. Creio não errar ao presumir que o sr. José Cabral supõe
que a Maçonaria é uma associação secreta. Não é. A Maçonaria é uma Ordem secreta, ou, com plena propriedade, uma Ordem iniciática.
O sr. José Cabral não sabe, provavelmente, em que consiste a diferença.
pois o mail é esse - não sabe. Nesse ponto, se não sabe, terá de
continuar a não saber. De mim, pelo menos, não receberá a luz.
Forneço-lhe, em todo o caso, uma espécie de meia-luz, qualquer coisa
como a "treva visível" de certo grande ritual. VOu insinuar-lhe o que é
essa diferença por o que em linguagem maçónica se chama "termos de
substituição".
A Ordem Maçónica é secreta por uma razão directa e derivada - a mesma
razão por que eram secretos os Mistérios antigos, incluindo os dos
primitivos cristãos, que se reuniam em segredo, para louvar a Deus, em o
que hoje se chamariam Lojas ou Capítulos, e que, para se distinguir dos
profanos, tinham fórmulas de reconhecimento - toques, ou palavras de
passe, ou o que quer que fosse. por esse motivo os romanos lhes chamavam
ateus, inimigos da sociedade e inimigos do Império - precisamente os
mesmos termos com que hoje os maçons são bindados pelos sequazes da
Igeja Romana, filha, talvez ilegítima, daquela maçonaria remota.
Feito assim o meu pequeno presente de meia-luz, entro directamente no
que verdadeiramente interessa - as consequências que adviriam, para o
País, da aprovação do projecto de lei do sr. José Cabral. Tratarei
primeiro das consequências internas.
A primeira consequência seria esta - coisa nenhuma. Se o sr. José Cabral
cuida que ele, ou a Assembleia Nacional, ou o Governo, ou quem quer que
seja, pode extinguir o Grande Oriente Lusitano, fique desde já
desenganado. As Ordens Iniciáticas estão defendidas, ab origine symboli, por condições e forças muito especiais que as tornam indestrutíveis de fora. Não me proponho explicar o que sejam essas forças e condições: basta que indique a sua existência.
De resto, têm os senhores deputados a prova prática em o que tem
sucedido noutros países, onde se tem pretendido suprimir as Obediências
maçónicas. Pondo de parte (8)
a Rússia - onde nem eu nem os senhores deputados sabemos o que
verdadeiramente se passa, e onde, aliás, quase não havia Maçonaria -,
poderemos considerar os casos da Itália, da Espanha e da Alemanha.
Mussolini procedeu contra a Maçonaria, isto é, contra o Grande Oriente
de Itália mais ou menos nos termos pagãos do projecto do sr. José
Cabral. Não sei se perseguiu muita gente, nem me importa saber. O que
sei, de ciência certa, é que o Grande Oriente de Itália é um daqueles
mortos que continuam de perfeita saúde. Mantém-se, concentra-se, tem-se
depurado, e lá está à espera; se tem em que esperar é outro assunto. O
camartelo do Duce pode destruir o edifício do comunismo italiano; não
tem força para abater colunas simbólicas vasadas num metal que procede
da Alquimia.
Primo de Rivera procedeu mais brandamente, conforme a sua índole
fidalga, contra a Maçonaria Espanhola. Também sei o certo qual foi o
resultado - o grande desenvolvimento, numérico como político, da
Maçonaria em Espanha. Não sei se alguns fenómenos secundários, como, por
exemplo, a queda da Monarquia, teriam qualquer relação com esse facto.
Hitler, depois de se ter apoiado nas três Grandes Lojas cristãs da
Prússia, procedeu segundo o seu admirável costume ariano de morder a mão
que lhe dera de comer. Deixou em paz as outras Grande Lojas - as que o
não tinham apoiado nem eram cristãs - e, por intermédio de um tal
Goering, intimou aquelas três a dissolverem-se. Elas disseram que sim -
aos Goerings diz-se sempre que sim - e continuaram a existir. Por
coincidência, foi depois de se tomar essa medida que começaram a surgir
cisões e outras dificuldades adentro do partido nazi. A história, como o
sr. José Cabral deve saber, tem muito destas coincidências.
Como tenho estado a apresentar razões e factos até certo ponto
desanimadores para o sr. José Cabral, vou desde já animá-lo com a
indicação de um resultado certo, positivo, que adviria da aprovação do
seu projecto. Resultaria dele - alegre-se o dominicano! - um grande
número de perseguições a oficiais do exército e da armada (excepto em
Cascais) (9)
e a funcionários públicos. Perderiam os seus lugares os que não
quisessem ter a indignidade de repudiar a sua Ordem. Resultaria,
portanto, a miséria para as suas famílias, onde é possível - e isto é
que é grave - que se encontrassem pessoas devotas de Santa Teresinha do
Menino Jesus, personagem que ocupa, na actual mitologia portuguesa, um
lugar um pouco acima de Deus. Resolver-se-ia, é certo, no estilo
inesperado do roulement que não rola, o problema do desemprego -
para aqueles actuais desempregados, bem entendido, que têm por
Grão-Mestre-Adjunto o sr. Conselheiro João de Azevedo Coutinho (10).
Seriam essas as consequências internas da aprovação do projecto: dois
zeros - um para o efeito antimaçónico da lei, outro para a barriga de
muita gente. Seriam essas as consequências internas. Vou tratar agora
das consequências externas, isto é, das consequências que adviriam da
aprovação do projecto para a vida e o crédito de Portugal no
estrangeiro. Esse aspecto da questão, esse resultado, não só possível
mas quase certo, creio bem que não ocorreu ao sr. José Cabral. Presto
homenagem - e a sério - ao seu patriotismo, embora lamente que seja um
patriotismo tão analfabeto.
Existem hoje em actividade, em todo o mundo, cerca de seis milhões de
maçons, dos quais cerca de quatro milhões nos Estados Unidos e cerca de
um milhão sob as diversas Obediências independentes do Império
Britânico. Assim, cinco sextos dos maçons hoje em actividade são maçons
de fala inglesa. O milhão restante, ou conta parecida, acha-se repartido
pelas várias Grandes Obediências dos outros países do mundo, das quais a
mais importante e influente é talvez o Grande Oriente de França.
As Obediências maçónicas são potências autónomas e independentes, pois
não há governo central da Maçonaria, que é por isso menos
"internacional" que a Igreja Romana. Há Obediências maçónicas que poucas
relações têm entre si; há até Obediências que estão de relações
suspensas ou cortadas. Dou dois exemplos. A Grande Loja de Inglaterra
cortou em 1877, por um motivo técnico, as relações, que ainda não
reatou, com o Grande Oriente de França. A mesma Grande Loja cortou, em
1933, as relações com a Grande Loja das Filipinas, em virtude de
divergências - cuja natureza não sei mas presumo - quanto à maneira de
desenvolver a Maçonaria na China.
Assim a Maçonaria necessariamente toma aspectos diferentes - políticos,
sociais e até rituais - de país para país, e até, dentro do mesmo país,
de Obediência para Obediência se houver mais que uma. Dou um exemplo. Há
em França três Obediências independentes - o Grande Oriente de França, a
Grande Loja de França (prolongada capitularmente pelo Supremo Conselho
do Grau 33) e a Loja Regular, Nacional e Independente para França e suas
Colónias. O Grande Oriente é acentuadamente radical e anti-religioso; a
Grande Loja limita-se a ser liberal e anticlerical; a Grande Loja
Nacional não tem política nenhuma. Dou outro exemplo. O Grande Oriente
de França tem uma grande influência política, mas, excepto através
dessa, pouca influência social. A Grande Loja de Inglaterra não se
preocupa com política, mas a sua influência social é enorme.
Conquanto, porém, a Maçonaria esteja assim materialmente dividida, pode
considerar-se como unida espiritualmente. O espírito dos rituais, e
sobretudo o dos Graus Simbólicos (nos quais, e sobretudo no Grau de
Mestre, está já, para quem saiba ver ou sentir, a Maçonaria inteira), é o
mesmo em toda a parte, por muitas que sejam as divergências verbais e
rituais entre graus idênticos, trabalhados por Obediências diferentes.
Em palavras mais perspícuas, mas necessariamente menos claras: quem
tiver as chaves herméticas, em qualquer forma de um ritual encontrará,
sob mais ou menos véus, as mesmas fechaduras.
Resulta desta comunidade de espírito profundo, deste íntimo e secreto
laço fraternal, que ninguém quebrou nem pode quebrar, que uma
Obediência, ainda que tenha poucas ou nenhumas relações com outra, não
vê todavia com indiferença o ser esta atacada por profanos. Os maçons da
Grande Loja de Inglaterra não têm, como disse, relações com os do
Grande Oriente de França. Quando, porém, recentemente surgiu em França, a
propósito dos casos Stavisky e Prince (11)
uma campanha antimaçónica, de origem aliás ultra-suspeita, a vaga
simpática, que potencialmente se estava formando em Inglaterra pelos
conservadores que atacavam o Governo Francês, desapareceu imediatamente.
O Times, conservador mas acentuadamente maçónico, relatou as
manifestações contra o Governo Francês com uma antipatia que roçou pela
deturpação de factos. E há muitos casos semelhantes, como o de certo
escritor maçónico inglês, que em seus livros constantemente ataca o
Grande Oriente de França, mudar completamente de atitude ao responder a
uma escritora inglesa antimaçónica, que afinal dissera pouco mais ou
menos o mesmo que ele havia sempre dito.
Nisto tudo, que serviu de exemplos, rtata-se de coisas de pouca monta,
simples campanhas de jornal, e por certo de atitudes espontâneas e
individuais da parte dos maçons que as tomaram. Quando porém se trate de
factos maçonicamente graves, como seja a tentativa, por um governo, de
suprimir ou perseguir uma Obediência maçónica, já a acção dos maçons não
é tão individual, e isolada, nem se resume a uma maior ou menor
antipatia jornalística. Provam-no diversas complicações, de origem
aparentemente desconhecida, que encontrou em países estrangeiros o
governo de Primo de rivera, e que encontraram, e ainda encontram, os
governos da Itália e da Alemanha. Esses, porém, são países grandes e
fortes, com recursos, de vária ordem, que em certo modo podem
contrabalançar aquelas oposições. Vem mais a propósito citar o caso de
um país que não é grande nem influente na política europeia em geral.
Refiro-me à Hungria e ao que se passou com o célebre empréstimo
americano.
Aqui há anos, pouco depois da Guerra, o Governo Húngaro decretou a
supressão da Maçonaria no seu território. Pouco depois negociava um
empréstimo praticamente feito quando veio da América a indicação final
de que ele não seria concedido se não se restabelecessem "certas
instituições legítimas". O Governo Húngaro percebeu e viu-se obrigado a
entrar em transacções com o Grão-Mestre; disse-lhe que autorizava a
reabertura das Lojas, com a condição (que parece do sr. José Cabral) de
que nelas pudessem assistir profanos. É escusado dizer que o Grão-Mestre
recusou. O Governo manteve, portanto, a "supressão das Lojas..." e o
empréstimo não se fez. Ora isto sucedeu com a Maçonaria Americana, que
não faz propriamente política nem mantem relações muito intensas com as
Obediências europeias, à excepção das britânicas. Tratava-se, porém, de
uma grave injúria à Maçonaria, e o resultado foi o que se vê.
Não venha o sr. José Cabral dizer-me que não precisamos de empréstimos
do estrangeiro. Nem só de empréstimos vive o país. Precisa, por exemplo,
de colónias, sobretudo das que ainda tem. E precisa de muitas outra
scoisas, incluindo o não incorrer na hostilidade activa dos cinco e tal
milhões de maçons que, por apolíticos, ainda não nos têm hostilizado.
Creio que disse o suficiente para que o sr. José Cabral e os outros
senhores deputados compreendam perfeitamente qual pode e deve ser o
alcance da aprovação deste projecto na vida e no crédito de portugal.
Antes de acabar, porém, quero dar-lhes uma pequena amostra da espécie de
gente em cuja antipatia activa incorreríamos.
Tomarei para exemplo a Grande Loja Unida de Inglaterra, não só pela
importância que para nós têm as nossas relações com aquele país, mas
também porque qualquer acção dessa Grande Loja - a Loja-Mãe do Universo,
com cerca de 450 000 maçons em actividade - arrasta consigo todos os
maçons de fala inglesa e todas as Obediências dos países protestantes.
Do resto da Maçonaria não é preciso falar.
São maçons, sob a Obediência da Grande Loja de Inglaterra, três filhos
do Rei - o Príncipe de Gales, Grão-Mestre Provincial de Surrey, o Duque
de York, Grão-Mestre Provincial de Middlesex, e o Duque de Kent, antigo
Primeiro Grande Vigilante.
É maçom o genro do Rei, Conde de Harewood, Grão-Mestre provincial West
Yorkshire. São maçons, em sua maioria, os fidalgos ingleses, sobretudo
os de antiga linhagem. São maçons, em grande número, os prelados e
sacerdotes da Igreja de Inglaterra, o clero mais profundamente culto de
todo o mundo, a Igreja protestante que mais perto está, em dogma e
ritual, da Igreja de Roma. Não prossigo, porque já basta... Lembro,
todavia, que os três grandes jornais conservadores ingleses - o Times, o Sunday Times e o Daily Telegraph - são ao mesmo tempo maçónicos...(12)
Acabei. Convém, porém, não acabar ainda. Provei neste artigo que o
projecto de lei do sr. José Cabral, além do produto da mais completa
ignorância do assunto, seria, se fosse aprovado: primeiro, inútil e
improfícuo; segundo, injusto e cruel; terceiro, um malefício para o País
na sua vida internacional. Não considerei, porque não tinha que
considerar, se a Maçonaria merece o mau conceito em que evidentemente a
tem o sr. José Cabral e outros que nada sabem da matéria. Esse ponto
estava fora da linha do meu argumento. Como, porém, a maioria da gente
não sabe raciocinar, pode alguém supor que me esquivei a esse ponto. Vou
por isso tratar dele embora protestando contra mim mesmo. Quem sofre
com isso é o leitor.
............................................................................................................
É a partir desse ponto que a grande maioria dos sites e blogs maçônicos transcrevem o artigo de Fernando Pessoa. Perde-se pelo menos três quartos do texto que o grande escritor e poeta da língua portuguesa escreveu naquele dia 4 de fevereiro de 1935 em defesa da maçonaria e contra a proibição do funcionamento das associações secretas em Portugal. Continuemos com a transcrição.
A Maçonaria compõe-se de três elementos: o elemento iniciático, pelo
qual é secreta; o elemento fraternal; e o elemento a que chamarei humano
- isto é, o que resulta de ela ser composta por diversas espécies de
homens, de diferentes graus de inteligência e cultura, e o que resulta
de ela existir em muitos países, sujeita portanto a diversas
circunstâncias de meio e de momento histórico, perante as quais, de país
para país e de época para época, reage, quanto à atitude social,
diferentemente.
Nos primeiros dois elementos, onde reside essencialmente o espírito
maçónico, a Ordem é a mesma sempre e em todo o mundo. No terceiro, a
Maçonaria - como aliás qualquer instituição humana, secreta ou não -
apresenta diferentes aspectos, conforme a mentalidade de maçons
individuais, e conforme circunstâncias de meio e momento histórico, de
que ela não tem culpa.
Neste terceiro ponto de vista, toda a Maçonaria gira, porém, em torno de
uma só ideia - a tolerância; isto é, o não impor a alguém dogma nenhum,
deixando-o pensar como entender. Por isso a Maçonaria não tem uma
doutrina. Tudo quanto se chama "doutrina maçónica" são opiniões
individuais de maçons, quer sobre a Ordem em si mesma, quer sobre as
suas relações com o mundo profano. São diversíssimas: vão desde o
panteísmo naturalista de Oswald Wirth até ao misticismo cristão de Athur
Edward Waite, ambos eles tentando converter em doutrina o espírito da
Ordem. As suas afirmações, porém, são simplesmente suas; a Maçonaria
nada tem com elas. Ora o primeiro erro dos antimaçons consiste em tentar
definir o espírito maçónico em geral pelas afirmações de maçons
particulares, escolhidas ordinariamente com grande má-fé.
Resulta de tudo isto que todas as campanhas antimaçónicas - baseadas
nesta dupla confusão do particular com o geral e do ocasional com o
permanente - estão absolutamente erradas, e que nada até hoje se provou
em desabono da Maçonaria. Por esse critério - o de avaliar uma
instituição pelos seus actos ocasionais porventura infelizes, ou um
homem por seus lapsos ou erros ocasionais - que haveria neste mundo
senão abominação? Quer o sr. José Cabral que se avaliem os papas por
Rodrigo Bórgia, assassino e incestuoso? Quer que se considere a Igreja
de Roma perfeitamente definida, em seu íntimo espírito pelas torturas
dos Inquisidores (provenientes de um uso profano do tempo), ou pelos
massacres dos albigenses e os piemonteses? E contudo com muito mais
razão se o poderia fazer, pois essas crueldades foram feitas com ordem
ou com consentimento dos papas, obrigando assim, espiritualmente, a
Igreja inteira.
Sejamos, ao menos, justos. Se debitamos à Maçonaria em geral todos
aqueles casos particulares, ponhamos-lhe a crédito, em contrapartida, os
benefícios que dela temos recebido em iguais condições. Beijem-lhe os
jesuítas as mãos, por lhes ter sido dado acolhimento e liberdade na
Prússia, no século XVIII - quando, expulsos de toda a parte, os
repudiava o próprio papa - pelo maçom Frederico II. Agradeçamos-lhe a
vitória de Waterloo, pois que Wellington e Blücher eram ambos maçons.
Sejamos-lhe gratos por ter sido ela quem criou a base onde veio a
assentar a futura vitória dos Aliados - a Entente Cordiale, obra do maçom Eduardo VII. Nem esqueçamos, finalmente, que devemos à Maçonaria a maior obra da literatura moderna - o Fausto, do maçom Goethe (13).
Acabei de vez. Deixe o sr. José Cabral a Maçonaria aos maçons e aos que,
embora o não sejam, viram, ainda que noutro Templo, a mesma Luz. Deixe a
antimaçonaria àqueles antimaçons que são os legítimos descendentes
intelectuais do célebre pregador que descobriu que Herodes e Pilatos
eram Vigilantes de uma Loja de Jerusalém.
Notas:
- Joseph Gabriel Findel, Geschichte der Freimaurerei von der Zeit ihres Bestehens bis zur Gegenwart, 1862 (Histoire de la Franc-Maçonnerie, tradução do alemão, Paris, 2 vols., 1866).
- George von Kloss, Bibligraphie der Freimaurerei und der mit ihr in Verbindung Gesetzten Geheimen Gesellschaften, Frankfurt/Main, 1844.
- Robert Freke Gould, The History of Freemasonry, 6 vols. 1ª edição, Londres, 1883-1887.
- Publicação da Loja londrina "Quatuor Coronati".
- Abade Augustin Barruel, Mémoires pour servir à l'histoire du Jacobinisme, 4 vols., Paris, 1797.
- John Robinson, Proofs of a conspiracy against all the religions and governments of Europe, 1793, (Preuve d'une conspiration contre les Rois et les religions, tradução francesa, Paris, 1798).
- Eduard Emil Eckert, Der Freimaurerorden in seiner wahren Bedeutung, Dresden, 1852 (La Franc-Maçonnerie dans sa vraie signification, tradução francesa, Paris, 1852).
- O texto publicado no Diário de Lisboa diz: "Ponho de parte o caso da Rússia, porque não sei concretamente o que ali se passou: sei apenas que os Sovietes, como todo o comunismo, são violentamente antimaçónicos e que perseguiram a Maçonaria; e também sei que pouco teriam que perseguir, pois na Rússia quase não havia Maçonaria. Considerarei os casos da Itália..."
- As palavras "excepto em Cascais" estão omitidas no texto do Diário de Lisboa. Referiam-se, muito provavelmente, ao então Presidente da República, General Óscar Carmona, que residia na Cidadela de Cascais e era maçom.
- Refere-se aos Monárquicos. Azevedo Coutinho era lugar-tenente do pretendente à Coroa.
- Ambos assassinados em ciscunstâncias que nunca foram esclarecidas. Stavisky era um aventureiro ligado à alta finança e Prince um dos juízes encarregados de investigar o caso.
- A partir deste parágrafo, o texto publicado no Diário de Lisboa é consideravelmente mais extenso do que o do opúsculo, motivo por que o preferimos, até ao fim.
- O texto do opúsculo, com que Fernando Pessoa conclui, vai transcrito a seguir:
"Sr. José Cabral, seja patriota por conta própria: Retire esse projecto! Deixe a Maçonaria aos maçons e aos que, embora o não sejam, viram, ainda que em outro Templo, a mesma Luz. Deixe a antimaçonaria àquela imprensa que é legítima descendente intelectual do célebre pregador que descobriu que Herodes e Pilatos eram Vigilantes de uma Loja de Jerusalém. Retire o seu projecto!
Retire, e no próximo dia 13, se quiser, vamos juntos a Fátima. E calha bem, porque é o 13 de Fevereiro - o aniversário da lei do João Franco que estabelecia a pena de morte para os crimes políticos."
Olá senhoras e senhores !
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